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Boro a arte de remendar tecidos do Japão.

“Boro” é uma palavra japonesa que significa “trapos esfarrapados”, é um tecido que revela muito sobre o padrão de vida das famílias no Japão do século dezoito. No boro, um grande pedaço de tecido é reparado com restos e trapos, que passaram por várias gerações de uma família. O resultado é uma versão japonesa de uma colcha de retalhos, onde centenas de tons de índigo são combinados por pontos grosseiros.

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Originalmente, todos os trapos de algodão tingidos com índigo natural eram remendados carinhosamente, aproveitando ao máximo a vida útil de cada pedaço, tornando um tecido que é único. O produto final é uma história que existiu no coração de uma família e na alma de um povo. As pessoas que faziam esses tecidos remendados viviam em uma situação onde tudo tinha muito valor. Nada podia ser desperdiçado, um conceito praticamente extinto no mundo consumidor moderno. A beleza irregular dos retalhos e a filosofia por trás desse ato captura a essência da sustentabilidade, com zero resíduos na produção artesanal.

O boro nasceu em Tohoku, norte do Japão. A região foi sinônimo de extrema pobreza durante o período Edo (1603 a 1868). O clima frio demais impedia o cultivo de algodão e seda, matérias primas para roupas. As plantações mais próximas, ficavam a mais de 300 km de distância. No inverno congelante, roupas são questão de vida ou morte. A solução da população na província foi tecer o cânhamo. Quase tudo era tingido de azul porque a tinta do índigo natural ajuda a afastar os insetos.

Além de ajudar na fazenda e cuidar da casa e crianças, as mulheres também plantavam, colhiam e processavam o cânhamo. Eram elas quem, com as próprias mãos, torciam, teciam, e tingiam as fibras para criar o tecido. O produto final, muito precioso, era resultado de muito suor e trabalho. Essa fibra rígida e áspera era tecida em uma malha aberta, leve e arejada para o verão, que não aguentava o inverno. A solução criativa foi sobrepor várias camadas, rechear tudo com fibras emboladas e remendar os buracos que apareciam com o tempo. O método aumentava a durabilidade e o isolamento térmico das peças.

O boro é a forma que a necessidade pela sobrevivência tomou naquela região inabitável. Foram fazendeiros extremamente pobres que, criaram uma estética têxtil maravilhosa.

Em 1892 que a primeira ferrovia chegou, trazendo algum algodão para a região. A fibra apareceu na forma de retalhos e restos. Os farrapos viraram especiarias cobiçadíssimas, excelentes para aumentar ainda mais a vida útil e o isolamento térmico de uma peça de tecido. O processo de aproveitamento consistia em encharcar o tecido velho na mesma água usada para lavar arroz. Isso soltava os fios, que eram costurados por cima de camadas rasgadas e esfarrapadas para elas ficarem mais grossas e resistente. O algodão também era cortado em fitas e tecido novamente com urdumes de cânhamo. Todo tecido que sobrava era trançado e usado como faixas na cabeça pelos fazendeiros. Qualquer pedacinho era guardado com muito carinho. As vezes, uma caixinha cheia de farrapos puídos era tudo o que uma garota levava quando se casava. Quando alguém morria, os familiares choravam, enquanto brigavam para ver quem ia ficar com o kimono.

A roupa era vida, muito mais valiosa do que dinheiro. Quando não havia mais condição de aproveitar pedaços de tecido, eles iam para o fogo. Queimavam lentamente e a fumaça repelia insetos. O cânhamo vem da terra e vira tecido que vira roupas. Roupas usadas viram retalhos, que são aproveitados para restaurar outras peças. No final, retornam ao solo na forma de cinzas. A frugalidade e o amor pelo tecido estavam verdadeiramente enraizados na vida dessas pessoas, muito antes do conceito de reciclagem aparecer.

O Japão é famoso pelas costuras geométricas. Elas surgiram da necessidade de fechar a trama aberta da malha de cânhamo. Os fios de algodão soltos no processo de lavagem acima eram usados para preencher os espaços, e os pontos serviam para unir tecidos e proteger o corpo. As costuras precisavam ser firmes, sem restringir o movimento. A sensibilidade artística e a habilidade foram se desenvolvendo a partir da necessidade de sobrevivência.

Olhando bem para o tecido, é difícil não imaginar que um dia existiu alguma pessoa que costurou cada um destes pontos. Alguém que vestiu essas roupas até elas desmancharem, e depois outro alguém que as restaurou, para que uma próxima pessoa usasse. É impressionante o esforço e o tempo gasto para fazer um pano durar mais! São duas, três, até mesmo quatro gerações reaproveitando o mesmo tecido. A história por trás do Boro é uma história de pobreza e miséria; mas é um trabalho artesanal incrível. Consciência ecológica, técnica e emoção, estes tecidos são obras de artes fantásticas.

Wabi-Sabi: O belo que é imperfeito, impermanente e incompleto.

Estamos tão acostumados com as conveniências modernas e produtos descartáveis que pensar em retalhos e pedacinhos de tecido como preciosidade pode ser uma triste lembrança de épocas passadas. Mas será que a abundância e acessibilidade não nos fez perder de vista algo muito mais importante? Será que a vida não era mais vida quando as pessoas enfrentavam dificuldades, fazendo, cuidando e usando até o último grão tudo que tinham? O trabalho dessas famílias não foi motivado pelo ego ou pela fama, muito menos pela vontade de criar algo belo. Foi necessidade, um objeto comum para uso no dia a dia. Mesmo assim, pelo posicionamento destes retalhos, a combinação de cores, e a padronagem das costuras tradicionais, percebe-se que mesmo vivendo na extrema pobreza, essas pessoas tinham orgulho da estética dos objetos que usavam no dia a dia. O boro passa uma mensagem muito bonita sobre preservação, artesanato, a relação do homem com a natureza e um talento que foi capaz de transformar abrigo em arte.

Nos lembra que somos indivíduos, mas não sobrevivemos sozinhos. Estamos aqui graças a nossos pais, nossos avós, e todos os que vieram antes. É uma beleza não intencional que não pode ser atribuída a uma pessoa só.

 

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